Ainda não chegou o S. Martinho - data assinalada para provar o vinho novo - e já é grande a polémica em torno da colheita mais recente de José Saramago. Referimo-nos ao inebriante e polémico Ca(n)im, o divinal néctar que exorbita paixões, fundamentalismos e intolerâncias que julgávamos já ultrapassados, sobretudo, desde que foram colocadas no mercado as reservas O Memorial do Convento e O Evangelho Segundo Jesus Cristo do referido produtor. Ainda bem! Os excessos de linguagem e fanatismo sempre contribuem para a animação do panorama cultural português e para o debate dos temas religiosos, inquestionáveis à luz da fé cristã. Só um bom Cunningham (Canim) é capaz de tamanha façanha, a sua aparência de "pomada" leve, clara, quase transparente, faz com que os desprevenidos não se apercebam da energia nele contida.
Como consequência, assistimos a hilariantes comentários de insuspeitas autoridades na matéria, que confessam que ainda não o provaram, mas já o classificam negativamente... Foi o caso do eurodeputado do PSD, Mário David, que exortou Saramago a renunciar à nacionalidade portuguesa, por alegadamente ter ofendido a cultura portuguesa com declarações contundentes acerca da Bíblia, classificada como «um manual de maus costumes». Imaginem o que diria o referido parlamentar, se tivesse consumido o referido néctar na totalidade... Provavelmente, mandá-lo-ia para a fogueira, como nos tristes e horrorosos tempos da Inquisição. Somos um povo que não considera devidamente os seus génios: deixámos Camões, Bocage e Almeida Garrett na miséria, por exemplo. A Saramago está reservado outro fim, porque, felizmente, os seus créditos são reconhecidos internacionalmente. Caso contrário, os Cains deste país encarregar-se-iam de o eliminar, qual Abel mal amado... E não seria pela disputa da única mulher e mãe então sobre a face da terra - Eva...
Nada melhor do que provarmos um pouco do polémico Ca(n)im, para nos animarmos e esquecer os disparates da intolerância nacional. Vejamos o seguinte excerto:
«Além disso, convém lembrar que adão viveu até aos novecentos e trinta anos, pouco lhe faltando, portanto, para morrer afogado no dilúvio universal, pois finou-se em dias da vida de lamec, o pai de noé, futuro construtor da arca. Logo, teve tempo e vagar para fazer os filhos que fez e muitos mais se estivesse para aí virado. Como já dissemos, o segundo, o que viria depois de caim, foi abel, um moço aloirado, de boa figura, que, depois de ter sido objecto das melhores provas de estima do senhor, acabou da pior forma.» (Pág. 16).