terça-feira, agosto 31, 2010

Crónica de um aprendiz de bombeiro


No dia 30 de Agosto, acordei por volta das 10.00, como é habitual em tempo de férias. Liguei o rádio e ouvi o apelo de Rui Moisés, Presidente da Câmara Municipal de Santana, solicitando a colaboração de voluntários para combater o incêncio que lavrava na zona do Ribeiro Frio. Depois de uma breve hesitação, decidi dar o meu contributo cívico em prol da defesa da laurissilva madeirense, justamente classificada de Património da Humanidade.

Vesti roupa apropriada, calcei umas botas todo-o-terreno, tomei um pequeno almoço ligeiro, arrumei uma mochila com alimentação ligeira e alguns líquidos, fui buscar uma enxada à arrecadação e parti, a toda a velocidade, com destino ao "pulmão" em chamas, numa zona que me habituei a ver verde, desde a adolêscencia, nomeadamente nas viagens escolares Faial-Funchal e vice-versa.

Como vivo no Funchal, segui o trajecto antigo, ou seja, subi o Monte, pela estrada regional, passando pelo Poiso. Durante o percurso, feito pela primeira vez após o incêndio que carbonizou o Parque Ecológico do Funchal e arredores, fiquei com maior vontade de colaborar nesta acção cívica, dada a enorme dor que a paisagem queimada me causava.

Sintonizei a RDP-M, Antena 1, e, às 11.00, o pedido de voluntários para combater os incêndios nos Balcões do Ribeiro Frio mereceu destaque no Noticiário nacional, o que me deixou ainda mais preocupado e mobilizado para a responder ao apelo. O cenário que me rodeava, antes de chegar ao Montado do Pereiro - perto da Herdade Chão da Lagoa - fez-me lembrar filmes de guerra, em tudo morre em combate, uma espécie de mega cemitério. Ainda me questionei se os fogos florestais tinham sido responsáveis inclusive pela alteração da toponimia...

Acelerei o mais que pude e comecei a descer do Poiso para o Ribeiro Frio, vislumbrando ao longe algumas nuvens de fumo ligeiramente claro, o que me fez deduzir que não poderia ser assim tão grave a situação que me esperava.

Chegado à zona comercial do meu destino, identifiquei apenas um carro dos Bombeiros Voluntários de Santana e pressenti que deveria estacionar naquele local o meu automóvel. Assim fiz e dirigi-me à levada dos Balcões, uma das principais atracções turísticas do concelho e talvez da RAM, que se encontrava aberta às visitas. Ao longo da caminhada, deparei-me com vários turistas, o que me fez concluir que os incêndios ameaçadores de que ouvira falar na rádio ainda estariam muito longe.

Estava enganado, já que, depois de contornar dois ou três vales pequenos, finalmente encontrei bombeiros, políticos, guardas florestais, populares e repórteres, junto a um bar, localizado mesmo na babujinha da levada. Do fogo, nada.

Cumprimentei o sr. Presidente da Câmara, o sr. Comandante dos Bombeiros e alguns populares. Perguntei-lhes em que poderia ser útil e um político local encaminhou-me para uma zona onde estavam a cortar árvores e arbutos, tendo em vista fazer um corta-fogo e "aceiros" para impedir que as chamas descessem até junto da levada e do referido estabelecimento comercial, cujo proprietário evidenciava algum nervosismo. Logo percebi o porquê do alarme.

No breve trajecto até ao local dos trabalhos, o meu anfitrião, conhecedor do meu espírito crítico, não resistiu ao impulso da má-educação e disparou:

- Se é para criticar como aqueles que estão acolá, não é preciso!

Fiquei bloqueado com tamanha falta de chá e, passados alguns segundos, disse-lhe que apenas vinha ajudar, respopndendo ao apelo lançado na rádio. Ele indicou-me o guarda florestal e os bombeiros. Como ninguém me deu uma tarefa concreta para fazer, não resisti à tentação de conhecer os críticos que tanto incomodavam o político local. Aproximei-me do fotógrafo de um órgão de informação e de outro popular que o acompanhava. Mal encetámos diálogo, em cinco minutos, se tanto, fizemos o ponto da situação, relativamente ao problema dos incêndios na RAM, tendo-se destacado as declarações bombásticas de Rocha da Silva, na véspera, em que insinuou que o recurso a meios aéreos para combater os incêndios florestais era do interesse do "lobby" dos helicópteros. Rapidamente, o jardinismo e a sua vã tentativa de sacudir responsabilidades nesta matéria e noutras levou o popular a desabafar:

- O Jardim devia era estar aqui a apagar incêndios para ver como é... Como é possível terem passado duas semanas e ainda não terem conseguido acabar com este lume?!

Não pude deixar de concordar, mas resolvi cumprir com a missão que tinha assumido: responder ao apelo. Nesse sentido, disse-lhes que não adiantava, agora, criticar, que a prioridade era combater o fogo. E lá fui para mais próximo dos trabalhos. Nisto, o Comandante chegou com mangueiras e motores, pedindo para que fosse feito ali, dentro da levada uma espécie de poço, donde seria levada água para apagar o fogo que não víamos.

Foi a oportunidade para começar a ajudar. Peguei na enxada e pus-me a tapar a levada seca. Outro popular fez o mesmo, uns metros mais adiante, até que a água chegou numa mangueira. Num ápice, fez-se chegar o precioso líquido ao cimo da encosta, graças à ajuda de um motor.

Mas não me sentia totalmente satisfeito, passando a maior parte do tempo, na levada dos Balcões, apenas a enrolar mangueiras e a desimpedir a passagem da água. Queria apagar fogo!

O meu desejo concretizou-se - e de que maneira! - daí a pouco, quando começámos a ver uma mancha negra de fumo e a ouvir um ruído de labaredas a deflagrar no topo da encosta, um pouco mais a leste do corta-fogo. Rapidamente, um valente bombeiro trouxe um motor e mangueiras para tentar levar água até ao foco de incêndio, mas a potência da máquina não era suficiente para a fazer chegar ao local pretendido. Como já, finalmente, tinha subido um pouco da encosta para auxiliar no transporte do equipamento, perante a ineficácia do mesmo, perguntei ao sr. Comandante se não era preferível tentar dominar o fogo manualmente, através de enxadas, pás e ramos de folhas verdes. Como ele não se opôs à sugestão, já que não disse nada, resolvemos subir a íngreme encosta ao encontro das chamas.

O fotógrafo, mesmo sem calçado apropriado, seguiu o exemplo, mas com o intuito de cumprir o seu dever profissional. Eu afastei-me dele e fui ao encontro do poderoso vermelhão que me atraía um pouco acima. Aproximei-me das chamas, mas fui obrigado a recuar, tal era a elevada temperatura que se libertava das mesmas, devido à combustão de troncos de acácias. Rapidamente, concluí que não poderia combater essa frente do incêndio florestal que descia a encosta, batendo nas labaredas com ramos verdes. Então, peguei numa pá que um jovem voluntário utilizava, enquanto ele foi buscar outra, e comecei a atirar-lhes terra e a afastar tudo o que era passível de ser facilmente queimado: folhas secas, troncos e ramos de árvores mortas. Ao fim e ao cabo, pus-me a fazer uma espécie de "aceiro", que foi decisivo para que o fogo não se propagasse.

Depois de verificar que o fogo estava controlado, comecei a descer a encosta e reencontrei os outros voluntários que faziam o mesmo. Passado algum tempo de vigilância, com alguns sustos à mistura, pois de vez em quando ouvíamos ruídos assustadores de pedras e troncos encadescentes que se soltavam e ameaçavam não só a nossa integridade física mas também o reacendimento do incêndio, regressámos à levada, acompanhados pelo tal político local que ficou admirado por me reencontrar, exclamando «Você ainda está cá?! É um combatente!». Apenas retorqui que nunca fiz outra coisa na vida. Com ele e alguns voluntários, confirmámos que o incêndio estava, de facto, controlado, embora ele tivesse dificuldade em admiti-lo, pois dizia frequentemente que já há duas semanas que ouve dizer que estão controlados.

Constatei que a calma já se havia instalado junto do bar, onde a cerveja regava muitas gargantas secas, e, mais adiante, alguns bombeiros almoçavam tranquilamente. Convidaram-me, simpaticamente, a fazer o mesmo, mas eu disse que não merecia tal repasto, pois tinha trabalhado muito pouco, comparando com o que eles haviam feito. Apenas aceitei uma laranja para matar a sede e disfarçar o cheiro a queimado que se havia impregnado no meu corpo e roupa.

Recuperado, graças à milagrosa laranja, decidi partir para outra frente, avançando pela levada com destino aos Balcões. Daí a pouco, reencontrei o sr. Comandante, que me informou que não valia a pena ir mais além, porque a zona estava perigosa, devido às sucessivas quedas de pedras. Acreditei e regressei com eles até ao centro das operações, onde me apercebi que o trabalho estava concluído. Daí em diante apenas seria feita vigilância.

Despedi-me e regressei até à zona comercial do Ribeiro Frio, onde me cruzei com o sr. Presidente da Câmara e o sr. Vereador João Gabriel, que me disseram que o pior já tinha passado, mas que tinham decidido fechar o acesso aos Balcões por razões de segurança.

No dia seguinte, quando li a imprensa e me apercebi que, afinal, o apelo feito não se dirigia a pessoas da minha idade, mas apenas a jovens estudantes da escola secundária, fiquei com a sensação de que o jovem autarca terá sido "chamado-à-pedra" por ter apelado à colaboração popular no combate aos incêndios. Provavelmente, o regime instalado vê nessa atitude de himildade louvável alarmismo e reconhecimento de incapacidade para lidar com o problema dos fogos florestais.

Receio, em suma, que esta será a primeira e última vez em que terei a oportunidade de responder civicamente a um apelo desta natureza. E não será por falta de incêndios!

Nota: Foto retirada de «insolitos.teamxanfre.com».

Sem comentários:

Enviar um comentário